segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Paternidade


O natal sempre me trouxe várias reflexões e aproveitando o espírito natalino e as festas em família, resolvi falar sobre um assunto muito importante e que pode deixar esse clima ainda mais agradável. Quero falar sobre abandono paterno. Confesso que muitas vezes critiquei o natal, porque sempre vi as pessoas dando mais importância para o papai noel, para os presentes e a comilança, do que para o nascimento (ou à pessoa) de Jesus em si. Isso tudo porque, além de não encontrarmos evidências da data exata do nascimento de Jesus, sabemos que a origem do Papai Noel, está relacionada com a figura de São Nicolau. Ele foi um bispo que viveu entre os séculos III d.C. e IV d.C. e se tornou conhecido por conta de sua generosidade e dos milagres que realizou. Mais tarde, o bispo foi transformado em simbolo natalino a partir de uma publicidade da Coca-Cola, ganhando assim popularidade. Então podemos ver que ele pouco se relaciona à pessoa de Jesus e por isso sempre me perguntei o que ou a quem estamos comemorando no natal. Apesar disso, com o passar dos anos fui deixando de lado esse jeito Grinch de ser, porque além de ser um jeito muito chato de passar por essa época do ano, eu admito que amo essa época e suas comemorações. 

Ainda assim eu precisava trazer uma crítica, só que dessa vez ela tem outro foco. Uma nova reflexão me veio à tona recentemente quando vi uma frase no Facebook que me chamou atenção, ela dizia que o papai noel é "papai" porque só aparece uma vez ao ano, dá presentes e vai embora. Isso me fez pensar nas milhares de crianças que são criadas sem um pai por perto, ou que nunca tiveram contato com seu pai. Comecei a pensar sobre essa comparação entre pai e papai noel e mais, relacionei esses dois papéis com Deus, que para muitos, é o Pai celestial. Não estou me referindo à orfandade, e sim especificamente sobre abandono, rejeição e omissão paternal. 
Acredito que essa comparação faz muito sentido sim, afinal, sabemos que hoje em dia o núcleo familiar tem se transformado muito, não encontramos mais aquele velho modelo de família de propaganda de margarina. Segundo estatísticas da Data Popular, em 2013  já existiam 67 milhões de mães no país, dessas, 31% (20 milhões) são mães solo. Em 2013, o Conselho Nacional da Justiça (CNJ) apontou que 5,5 milhões de crianças brasileiras não possuem o nome do pai registrado na certidão de nascimento. A modernidade infelizmente tem tornado as relações mais líquidas, assim como Bauman já havia nos ensinado. E é nesse contexto de mudanças que encontramos também, lamentavelmente, muitas crianças vivendo as consequências do abandono paterno, que pode ser tanto de natureza material, intelectual ou afetiva.

Falando um pouco sobre o conceito de pai no âmbito jurídico, entendemos que a paternidade é tida como direito-dever, construído na relação afetiva e que assume os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação tais como: “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar” (art. 227 da Constituição). Ou seja, tem-se considerado pai aquele que assumiu os citados deveres, ainda que não seja o genitor. Ou seja, é muito mais do que o simples provimento de alimentos ou a causa de partilha de bens hereditários. É uma relação que envolve mais do que a relação genética, envolve a constituição de valores e da singularidade da pessoa e de sua dignidade humana, adquiridos principalmente na convivência familiar durante a infância e a adolescência, distinguindo-se, portanto,  a figura  do pai e do genitor, pois seus significados são diferentes.

Já as mulheres que desde sempre acumularam mais funções do que os homens, que cuidam da casa, trabalham fora, também têm que cuidar dos filhos. Enquanto os pais pouco ou nada participam, sobrecarregando assim essas mães. Muitas mulheres são humilhadas nesse processo e muitas vezes são induzidas ou pressionadas pelos seus parceiros ao aborto. Muitos homens confundem as coisas, porque ao romper a relação com a mãe de seus filhos, abandonam também as crianças. Até existem alguns pais (ou genitores) que assumem seu papel participando na criação das crianças, convivendo, dando carinho e atenção a eles. Mas a grande maioria dos pais (inclusive até mesmo os que vivem com seus filhos) são ausentes, ou omissos em suas responsabilidades e deveres. Existem exceções sim, mas de uma forma geral, é isto. O pior de tudo é quando esses "pais" participam apenas financeiramente e se gabam por isso. Então eu te pergunto: quanto custa a presença de um pai? Quanto vale o carinho e cuidado de um pai? Eu e muitos filhos por aí sabemos o preço/valor dessa presença (ou ausência) e ela excede ao valor de roupas caras, brinquedos, colégio particular, viagens e tudo o que o dinheiro pode comprar. Posso te afirmar que nada se compara e com nada se compensa. A lei pode exigir que um pai pague pensão mas quem vai obrigar um pai a dar atenção, carinho e cuidado? Amor não se cobra, e precisa ser espontâneo. 

Sei que é um assunto extremamente delicado para qualquer um, inclusive pra mim, porque eu vivi isso, minha mãe me criou sozinha com muita dificuldade (assim como milhares de mães) e também conheço muitas pessoas que viveram o mesmo. E durante minha caminhada tenho refletido sobre quem me tornei e sobre a influência daqueles que me colocaram no mundo. Sei muito bem como é essa ausência paterna e a forma como ela pode nos afetar gerando feridas e traumas como consequências que nunca serão mensuradas. 
São muitos danos psicológicos e emocionais, além de influenciar nossa formação enquanto seres humanos. Muitos desses filhos, podem se tornar pessoas inseguras, depressivas, podem desenvolver baixa autoestima e adicções diversas. Alguns desenvolvem relações amorosas abusivas, imploram por migalhas devido a sua carência afetiva.

Contudo, não sou eu quem vai ditar ou "ensinar" o que é ser um pai aqui. Também não posso simplesmente culpar todos os pais que se encaixam nessa situação, não posso ser juíza de coisa alguma. Acredito que cada um tem sua história, seus motivos e limitações enquanto ser-humano. Mas eu precisava trazer alguns conceitos, relatos e desabafos sobre esse assunto para induzir e provocar reflexões. E não posso deixar de ver tudo isso do ângulo em que a vida me colocou, além de lamentar por quem está no mesmo barco que eu.
Existem alguns meios de lidar com isso e acredito que seja uma escolha muito pessoal. A terapia é um deles, por exemplo. Mas, particularmente, atribuo essa cura, não apenas à terapia, mas também ao nosso Pai celestial. Na verdade não posso afirmar se Ele é homem ou mulher, mas penso que Ele excede gênero ou sexualidade. Penso que ao me relacionar com Ele, passo a ser amada como uma filha, posso encontrar cura, consolo e amor. Amor que muitas vezes me faltou, porém tão profundo e supremo que é maior e melhor do que qualquer pai poderia proporcionar até mesmo para aqueles que possuem um pai presente. 

Por fim, meu desejo é que você pai, possa ter consciência disso tudo e termino com estas palavras de Cecília Meireles:


Como se Morre de Velhice


Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)

Cecília Meireles, in 'Poemas (1957)'

Referências: 
https://www.todamateria.com.br/papai-noel/
https://www.historiadomundo.com.br/curiosidades/a-origem-do-papai-noel.htm
https://www.terra.com.br/noticias/educacao/voce-sabia/o-papai-noel-foi-criado-pela-coca-cola-saiba-origens-do-natal,6008aaccde6da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
https://super.abril.com.br/historia/papai-noel/
https://brasilescola.uol.com.br/natal/historia-papai-noel.htm
https://jus.com.br/artigos/33778/evolucao-do-conceito-de-paternidade-e-as-consequencias-no-direito-das-sucessoes
https://jus.com.br/artigos/23844/a-constituicao-federal-de-1988-e-o-surgimento-da-paternidade-socioafetiva
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-164/meu-pai-meu-genitor-o-valor-constitucional-do-afeto/
https://manualdohomemmoderno.com.br/comportamento/abandono-paterno-e-uma-epidemia-silenciosa-e-nos-precisamos-urgentemente-falar-sobre-isso
https://falauniversidades.com.br/abandono-afetivo-paterno-alem-das-estatisticas/
http://averdade.org.br/2017/06/cultura-abandono-paterno/